OLHAR DE CAMINHANTE: pela superação da patologia da normalidade e resgate nossa afetividade
"Os olhos são as janelas da alma... e o espelho do mundo". (Leonardo da Vinci)
Hoje o mundo perdeu, ao meu ver, um grande ser humano, o escritor português José Saramago. E para homenageá-lo vou escrever, foi assim que ele me cativou, vou rememorar alguns escritos meus de quando eu ainda estava terminando o doutorado.
Inspirada no livro de José Saramago, “Ensaio sobre a cegueira”, comecei escrever essas palavras...
... Nessas minhas idas e vindas, não me canso de observar o ser humano. Percebo como o individualismo tem imperado sobre a afetividade.Cada dia mais, na luta pela sobrevivência o individualismo cresce, bem como, a solidão e a tristeza. Quantas pessoas vazias, nos bares, fingindo alegrias. Nas noites, sempre acompanhadas de pessoas diversificadas, mas no fundo, e no cotidiano, tristes e solitários.Com quantas pessoas você pode contar a qualquer hora? De verdade? Pro que der e vier, em qualquer circunstância?Pergunto-me: onde está o afeto?Tenho observado pelas ruas pessoas apressadas, estressadas, esbarrando-se nas outras, sem sequer um pedido de desculpas, sem um gesto de acolhimento, sem um bom dia...Entre mendigos, drogados, desempregados e empregados alienados... Penso que em maior número estão aqueles que não têm afeto.Fico pensando porque as demais pessoas que caminham pelas ruas e especialmente as nossas autoridades não enxergam ou não querem ver isto, que eu entendo ser uma das maiores problemáticas da humanidade: o DESAFETO, o desamor, a perda da sensibilidade.“A razão tem que estar acima da emoção”, estou cansada de ouvir isto!Mas que razão? Esta razão egoísta, individualista, fria, gananciosa, condicionada pela sociedade consumista, mercantilista, capitalista, pós-moderna?As pessoas não se permitem mais sonhar, amar, consideram isto perder tempo. Suas vidas não tem espaço para sonhos e amores, suas prioridades são outras. Creio ser este o maior mal da humanidade, uma patologia social gravíssima. Não saber ou não se permitir amar, a si mesmo, ao outro.Sem afeto, não conseguimos enxergar nada além de si mesmo, e pior nem mesmo a si. Lamentável que, grande parte da humanidade está padecendo deste mal, cujo remédio não se encontra à venda, não existe a fórmula da sensibilidade, do afago na alma, de afeto no coração.Uma das maiores causa da guerra, violênica e do egoísmo humano é a escassez desse antídoto afetuoso, falta abraço apertado, sorriso verdadeiro, beijo sem malícia, elogios sinceros, declarações espontâneas e puras de amor e de bem querer.A sociedade do capitalista do cada um pra si e a mídia, usam seus artifícios ideológicos para nos tornar cegos (mesmo com olhos saudáveis), limitam nossa visão, nos torna frios, individualistas, consumistas e quantitativos. E as instituições que deveriam emancipar e tirar essa venda que nos cega dos olhos, não tem conseguido fato fazê-lo. A escola estimula a competitividade e a igreja tornou-se um rentável mercado.Durante a espera na rodoviária, observava as pessoas, olhares sem brilho, expressões de cansaço, tristeza, vazio... Uns liam livros, revistas, outros cochilam, alguns procuram outros olhares, e há aqueles que pareceiam já ter iniciado a viajem, antes mesmo de entrar no ônibus, com a mente longe...Adentrando no ônibus e, continuava a observar... Olhares de saudade, despedida, sofrimento, timidez, cansaço... de desamor, de falta de amor próprio e do outro... desesperançosos, ansiosos.Cada um com sua singularidade... com seu jeito de olhar o mundo... Uns observavam o nada... alguns choravam... outros ouviam walkman... Havia aqueles que, apenas se fechavam dentro de si e dormiam... O meu olhar apenas observava... para tentar, quem sabe entendê-los, traduzi-los. No vidro do ônibus deparei com meu olhar, que como muitos, carregava um cansaço, mas se diferenciava dos outros porque trazia brilho, sonhos, afetos e esperanças...A falta de afeto que impossibilita a visão humana do mundo está vitimando a humanidade. Com isso, as pessoas perdem a visão afetiva, da sensibilidade e respeito mútuo, passam a viver trancadas dentro de si. Como coloca Saramago “há muitas maneiras de tornar-se animal, está é só a primeira delas”.“Ensaio Sobre a Cegueira” de Saramago é a crítica ao egocentrismo humano, utilizando metáforas vai mostrando a incapacidade adquirida pelo homem de olhar para os problemas do próximo, o desafeto presente nas relações sociais, na chamada sociedade globalizada.Saramago nos mostra “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam” e nos leva a perceber que estamos cegos da alma, dos sentimentos, da compreensão, da esperança, da tolerância e nos convoca, de certa forma, a assumir uma nova maneira de ver a si mesmo, o outro, o mundo...Neste olhar interior, podemos encontrar o verdadeiro sentido da vida, para que a gente deixe de ver a vida, assim, em preto em branco e se estende também ao espírito, para que possamos enxergar a si e ao mundo sempre como extensão do outro...Precisamos urgentemente resgatar o afeto, pois, só o afeto consegue manter viva uma das mais belas e necessárias qualidades que nos caracteriza plenamente como seres humanos: a sensibilidade. Dela decorre a capacidade de saber ouvir e se preocupar com o outro.Esse texto vem de encontro com nossas aspirações e indignações como ser humano e como educadora ao vislumbrarmos uma educação que nos abra uma possibilidade de re-encantamento do mundo e da própria essência de nossa existência, e venha de encontro com um resgate da afetividade humana.Precisamos conseguir romper com silêncio da normalidade, religar razão e emoção, corpo e alma; existência, essência e consciência, com a ciência; efetividade e afetividade. Como afirma o Prof. Roberto Crema “religar conhecimento ao amor é o mais instigante desafio do momento...Como afirmou um sábio o amor é a tecnologia mais sofisticada de todos os universos!... Sem amor não é possível reinventar e re-encantar o mundo, nenhuma sala de aula, nenhum aluno... Somente no dia que aprendermos a amar total e incondicionalmente é que receberemos um certificado de humanidade plena. Esta é a utopia humana e estamos aqui para fazê-la florescer.A sociedade vive um momento obscuro, mesmo diante de tantos saberes acumulados o homem tem cada dia mais sua interioridade empobrecida.Como bem coloca Heidegger: “Nenhuma época acumulou sobre o homem conhecimentos tão numerosos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber do homem sob uma forma tão pronta e tão facilmente acessível. Mas também nenhuma época soube menos o que é o homem.”E A EDUCAÇÃO TEM, SEM DÚVIDA, UMA FUNÇÃO ACIMA DE TUDO HUMANA, buscando potencializar no homem a capacidade de pensar criticamente, discernir, interpretar e dar um sentido à sua existência.Vivemos tempos de modismos, onde uma avalanche de ideologias e desinformações caem sobre nossas mentes a cada instante.Vivemos o tempo do olhar para si, quando sozinhos não somos nada, e como educadores; precisamos educar os nossos olhos, a maneira de olhar, como diz o poeta Manoel de Barros “beleza e glória nas coisas é olho que põe.” Se almejamos transformar o mundo, devemos começar a mudar a forma como o vemos.Faz-se necessária ainda a educação para o escutar, pois, isto é o que antecede a compreensão, para que possamos “transcender esta realidade ab-surda”, esta surdez e silenciamento, mesmo frente aos gritos ensurdecedores de nossas crianças, jovens e, de nosso povo, diante da dor, da fome, da violência, da exclusão, da fragmentação social.Me pergunto: não seria tudo isso uma maneira inconsciente de denunciar a violência a que estão sendo submetidos? O vandalismo, a violência, as drogas, o desamor, a realidade a que chegamos é o maior denúncia e o maior pedido de socorro de uma sociedade, que tendo sido condicionada, ou seja, inconscientemente levada à patologia da normalidade e da falta de sensibilidade.É necessário indagar quando vamos começar a educar nosso coração para o conviver com o outro, para o encontro, para o florescer como seres humanos, para querer bem sem olhar pra quem, para amar e se deixar ser amado.Vamos esperar até quando para educar e aprender a viver juntos? Isto é uma utopia audaciosa eu sei! Mas como dizia Platão: “Sejamos razoáveis; peçamos o impossível!” Educar é mais que uma função, que uma especialização, que uma técnica, é acima de tudo uma missão de fé, que transcende o possível.Quem adere a normalidade, ao senso-comum e se contenta apenas com o possível está hipnotizado pelo sistema, pela ideologia da alienação coletiva, pelo poder vigente.Como coloca o Prof. Roberto Crema: “O desafio da utopia é abrir espaço para o apocalipse humano. Vivemos em tempos de uma humanidade doente, numa UTI planetária. A patologia da normalidade.”O que nos conforta e revigora são as pessoas que ainda se sensibilizam, que são capazes como eu, de sentir, na própria pele, as contradições do mundo, a dor do outro e pelo outro, que ainda se angustiam, que ainda têm insônias sóbrias, que não são apenas indignação estatuada, mesmo sendo chamados de loucos, idealistas, sonhadores e sentimentalistas. Enfim, de “anormais”, por ousarem viver fora desta normalidade, desta falta de sensibilidade, quando estes são, a meu ver, os raros seres iluminados com “a dádiva da sensibilidade e da face diferenciada, que não se dissipa na conformidade do rebanho.”Às vezes, penso que nasci no mundo errado, e me culpo pelo excesso de afetividade, de preocupação com o outro, de sonhos, mas prefiro assim, a ser insensível. Eu não quero mesmo ser “normal”, se isto implica em ter que se adaptar, em se padronizar, aceitar e fortalecer a desumanização do homem. Se isto for normal e saudável para essa sociedade doente, eu ainda prefiro louca, eu prefeito ser ponte, a contemplar solitária e triste o horizonte, retomando Dante “cada pessoa é convocada a ser um Sumo Pontífice, a se fazer de ponte entre o céu e a terra, a desenvolver raízes e asas.” Como diz Saramago: “se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.”Eu não quero sofrer dessa patologia que consiste, muitas vezes, suportar o que não é para ser suportado, em tolerar o que é intolerável, em contemplar o que é desprezível! Eu ouso vislumbrar uma educação capaz de superar essa patologia normalidade e da falta de afetividade, onde assistimos a toda essa barbárie, essa ganância materialista insana, que aos poucos vem sendo deflagrada, e televisada; esses são os claros e visíveis sintomas de um estado, de uma sociedade decadente, e de que a educação precisa urgentemente rever seus propósitos, repensar o sentido da vida humana, para que possamos dar início à superação da alienação através de uma tomada de consciência.E para isso, como diz o memorável José Saramago: “na sociedade atual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objetivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objetivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma. ”Finalizando, como Fernando Pessoa eu desejo: “Que as forças cegas se domem pela visão que a alma tem!”
sexta-feira, 18 de junho de 2010
HOMENAGEANDO JOSE SARAMAGO
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